quarta-feira, 9 de dezembro de 2009

Redentores do acaso



"Vivo entre os homens como entre fragmentos do futuro; daquele futuro que eu vejo.E este é todo meu engenho e arte, adensar e juntar em um tudo o que é fragmento e enigma e horrível acaso. E como eu suportaria ser homem se ser homem também não fosse ser poeta, decifrador de enigmas e redentor do acaso."


Assim falou Zaratustra - Friedrich Nietzche



Penso que esta é a frase de Nietzche que melhor sintetiza sua idéia de "vontade de potência". Ele refutava o niilismo que sucede ao natural sentimento de impotência humano. Se somos obra de um "horrível acaso" ,isto é irrelevante diante do fato de estarmos aqui e sermos os únicos capazes de transformar a realidade.
Nietzche combateu o mito de Deus mas colaborou para criação de um novo mito, o acaso. Da mesma forma que primordialmente o intangível e o desconhecido eram atribuidos a Deus, hoje tudo que não entendemos atribuimos ao acaso. Quase ninguém realmente se pergunta, o que é o acaso?
Nietzche foi ao ponto com sua "vontade de potência". Nascemos desprotegidos ,mas criamos escudos para nos defender .Espadas para sondar o inescrutável e purgar as ameaças. O acaso é apenas mais um de nossos desafios.


Segue texto que escrevi para o arscientia :

O acaso revisitado
Marcelo Beraldo G. de Castro22/10/2007


O estudo estruturado do acaso é uma das áreas mais recentes do conhecimento humano. Este "princípio natural" apresenta definições que nos remetem a metáforas tão imprecisas quanto, por exemplo, a idéia de acidente.
Ainda hoje, o acaso dá margens a interpretações confusas, tautológicas ou mesmo metafísicas, como na disputa entre religiosos conservadores e ateus liberais, cada qual usando o conceito do acaso como argumento favorável. O renomado geneticista e ateu engajado, Richard Dawkins, chegou a formular: "A probabilidade da existência de Deus é a mesma da existência de fadas ou duendes". Numa regressão lógica, a probabilidade assumiria o papel metafísico antes atribuído a Deus, já que Dawkins não postula qualquer princípio criador que rivalize com o "Deus" da cosmologia. A evolução darwiniana pode ser encarada como uma etapa de um processo mais amplo, onde o acaso funciona como "instrumento" (1).
O campo da matemática responsável pelo estudo do acaso é a probabilidade. Ao longo da história, aspectos do que classificamos atualmente como probabilidade tem modelado, principalmente, relações comerciais e religiosas. Na antiguidade, por volta de 5000 a.C., noções empíricas de probabilidade eram aplicadas por navegantes mesopotâmicos e fenícios para estipular taxas e prêmios nos casos de naufrágios e roubos de carga. Os gregos, que 300 a.C. haviam axiomatizado a geometria, não deixaram registros de estudos da probabilidade. Era comum relegar o acaso ao domínio dos deuses e das causas místicas. Em 950 d.C., o bispo belga Wibold criou um jogo moral envolvendo três dados e 56 possibilidades, a cada combinação sendo atribuída uma penitência ou prática de virtude. Há registro do uso das probabilidades no ramo dos seguros pessoais.
Poderíamos considerar como marco do estudo moderno das probabilidades o ano de 1570, quando Girolamo Cardano, em sua obra De proportionibus libri V, lança as bases para o cálculo de probabilidades simples. Jogos de azar foram campo fértil do desenvolvimento das probabilidades, edestacam-se neste período os trabalhos de Blaise Pascal e Pierre de Fermat com o surgimento dos primeiros teoremas e o estudo da análise combinatória. A axiomatização da teoria das probabilidades é fato recente na história da matemática, e data do ano de 1933, com a obra de Andrei Kolmogorov.
Na maior parte de sua história, a humanidade ignorou a diversidade das aplicações das probabilidades. Hoje, é quase impraticável o desenvolvimento das ciências naturais e da tecnologia sem o seu uso, e mesmo nas ciências humanas temos larga utilização da estatística.
O acaso é o fulcro de discórdia de duas correntes antagônicas de físicos e matemáticos em suas análises da realidade. Na matemática, o exemplo mais significativo é o do matemático alemão David Hilbert. Por volta de 1930, Hilbert lançou um ambicioso projeto para reduzir todos os problemas científicos a um sistema formal de regras matemáticas; este projeto foi, pelo menos, adiado por tempo indeterminado por Kurt Gödel, que demonstrou a impossibilidade de se provar como correto ou incorreto a maioria dos axiomas matemáticos e introduziu a imprevisibilidade à ciência matemática.
Entre os físicos, o determinismo postula que, conhecidas as condições iniciais de um sistema todas suas condições futuras podem ser previstas. O determinismo foi defendido por gigantes da ciência como Laplace, Newton e Einstein que, subliminarmente, defendiam a tese de que o universo seja uma obra intencional, organizada e, portanto, deve apresentar aspectos mecânicos, previsíveis. Diante da mecânica quântica, Albert Einstein teria declarado: "Deus não joga dado". Isaac Newton, por sua vez, foi criterioso ao reservar um papel central ao criador em sua obra. Entretanto, o determinismo sofreu um grande revés em 1927 quando, Werner Heisenberg enunciou o princípio da incerteza, que introduz o acaso ao cerne da matéria.
Segundo a visão Laplaciana, nossas inferências probabilísticas seriam reflexos de nossas limitações mentais, enquanto a corrente científica atual credita ao acaso um papel ontológico fundamental, uma característica indissociável da natureza. Este debate está inserido num contexto cultural bem mais amplo, onde pressões ambientais e sociais espelhariam na nossa forma de fazer ciência aspectos fundamentais do universo ou, apenas questões cruciais à nossa sobrevivência e comuns de nossa cultura. Nossa forma de produção científica reproduz a tendência pragmática da sociedade contemporânea.
Imaginemos um jogo de cara ou coroa. Probabilisticamente, o lançamento da moeda apresentaria possibilidades iguais da moeda de mostrar a face visível como cara ou coroa, de forma aleatória. Caso conhecêssemos todas as variáveis relevantes envolvidas no momento do lançamento, como: a força do lançamento, o momento angular da moeda, a resistência do ar, a densidade do ar, etc., seria possível calcular o resultado do lançamento? Um computador suficientemente potente talvez pudesse. Jacques Hadamard e Henry Poincaré compreenderam a dependência hipersensível das condições iniciais em um sistema probabilístico, em que pequenas variações nas condições iniciais alteram completamente os resultados de um sistema aleatório. Esta tentativa de reduzir um sistema aleatório a um sistema clássico, determinístico é uma abordagem conceitual que revolucionou e criou campos científicos novos, entre eles a meteorologia, a matemática dos sistemas não lineares, mecânica dos fluidos, teoria da informação, termodinâmica.
Acaso está associado ao conceito de caos, desordem. E como poderiam surgir ordem e complexidade a partir de sistemas estocásticos? A solução desta questão pode estar no fato das variáveis aleatórias estarem submetidas ao crivo de fatores determinísticos favoráveis como a seleção natural, a existência de constantes físicas perfeitamente ajustadas à possibilidade de um universo ordenado, complexo e com formas de vida inteligente.
Considera-se de um modo geral que são 15 as principais constantes físicas conhecidas. Seus valores são perfeitamente ajustados e não há teoria que esclareça o porquê destes valores. Caso a carga do elétron tivesse valor ligeiramente diferente do conhecido, nosso universo desabaria. O mesmo raciocínio vale para as demais constantes da física. Uma explicação simplória para a existência destes "fatores determinísticos auto-organizadores" é o princípio antrópico. Segundo este princípio, simplesmente, caso estas constantes não fossem perfeitamente ajustadas, "não existiríamos"; especulações seriam desprovidas de sentido.
Segundo uma fórmula de Jacob Beckenstein e de Stephen Hawking acerca da entropia de buraco negro, a probabilidade de que, puramente por acaso, surja um universo parecido com o nosso é de uma parte em 10^10^123(^ é símbolo de potência). Um matemático, diante desta afirmação, declararia que é impossível a existência do nosso universo. Intuitivamente, é desumano conceber uma cadeia infinita de pequenos, médios e gigantescos "acidentes" que terminem por deflagrar um universo e seres humanos. Por isto, muitos de nós, inclusive cientistas, somos inclinados a crer que o acaso seja um princípio e uma característica deste universo, e não o princípio subjacente ao universo.
Como examinamos, o enfoque moderno do estudo do acaso, aquele que remonta ao método grego, é recente na história humana e avanços nesta ciência poderão tornar-se paradigmas em nosso entendimento da natureza e do universo. A pretensa dualidade determinismo/acaso, cada vez mais, se apresenta como um falso dilema. A noção familiar do acaso como mistério e acidente pode dar lugar ao fato da aleatoriedade ser um princípio fundamental deste universo, sem o qual não haveria complexidade e não seria possível a existência de seres como nós.
Sutilmente, o acaso tem sido pano de fundo de disputas científicas, religiosas e até políticas. A imprevisibilidade se interpõe decisivamente ao nosso desejo de domínio e controle da natureza, impõe limites ao conhecimento. A natureza elegeu um arbitro totalmente isento para intermediar seus processos? Ou, como disse Petrônio: O acaso tem sua razão.



Notas:
(1) A seleção natural atua de maneira que, combinações genéticas aleatórias que não estejam adaptadas ao ambiente, pereçam.
Referências: Ruelle, David. Acaso e caos. São Paulo, ed. Unesp, 1993, cap.8-22.Penrose, Roger. O grande o pequeno e a mente humana. São Paulo, ed. Unesp, 1998, p.61.Boyer,C.B. História da matemática.São Paulo, ed. Edgard Blücher, 1996,terceira ed. Cap.17-21-28

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