segunda-feira, 24 de maio de 2010

Cultura e tecnologia

Estamos acostumados a pensar em tecnologia como um acessório e consequência da nossa cultura e das forças econômicas. A complexidade e estilo de vida contemporâneo lança dúvidas sobre antigas certezas.Se antes uma técnica era desenvolvida apenas para o nosso conforto, agora ela é decisiva nos nossos relacionamentos e entendimento do universo. Hoje sabemos que nossas limitações orgânicas impõe barreiras ao conhecimento que não podemos mais aceitar. De coadjuvante , a tecnologia vai se tornando a protagonista de um novo mundo. Tudo pode e deve ser questionado , uma tecnologia humanizada será resultado da profundidade de nossas perguntas.


Segue outro texto que escrevi para o arscientia.

Ciência e tecnologia em perspectiva

Marcelo Beraldo G. de Castro

10/11/2007

Presentes na cultura - sejam por meio das artes, dos jogos ou dos meios de divulgação, na medicina, na arquitetura e na agricultura -, ciência e tecnologia adquirem um caráter ubíquo na sociedade. Entender como estas manifestações se relacionam e interferem em nosso entendimento da realidade é tarefa que tem sido subestimada e exercida por poucos pensadores. José Ortega y Gasset entendeu que cabe ao técnico papel secundário e coadjuvante, e os positivistas lógicos expurgaram a essencialidade do debate atual: é esta vertente pragmática que tem dominado as técnicas e a ciência. Nossa incapacidade em formular paradigmas que preencham de significado os avanços científicos dá lugar a um vácuo de sentido, realimentado pelo esgotamento das ideologias. Neste texto tentaremos avançar um pouco neste domínio da ciência e da tecnologia.

A utilização encadeada e o estudo sistemático das técnicas, processos, métodos e instrumentos deram origem ao fenômeno da tecnologia. Uma linha tênue separa a pesquisa cientifica do desenvolvimento tecnológico contemporâneos; equivalentes em método, seus processos são prolíficos na geração de hipóteses com a validação, ou não, pelas observações empíricas (1). Diferem-se, em alguns casos, com relação aos objetivos. A ciência busca desvendar as propriedades naturais, a tecnologia quer transformar a natureza de forma a humanizá-la (2).

As partes tornam-se interdependentes, mesmo havendo um conflito com relação às finalidades e como elaboram formas e conceitos. A ciência tenta esclarecer etapas de processos naturais a partir de uma convergência com o que consideramos realidade, a tecnologia se permite o processamento da natureza em bases unicamente simbólicas, já que não necessita elucidar "verdades" naturais, mas quer transformar o ambiente. O símbolo é uma aproximação do real e uma interpretação antropocêntrica do universo, e, neste caso, da tecnologia, uma aproximação mais artificial do que a cientifica. É, em boa medida, esta tensão entre ciência e tecnologia, realidade e simbolismo, o principal motor do progresso e da cultura contemporâneos.

Esta "contaminação mútua" confere à tecnologia um compromisso com as relações de causa e efeito, enquanto a ciência recebe um componente artificial adicional. Programas e ambientes simulados já são comuns nas pesquisas cientificas, e são uma clara influência da utilização sistemática de técnicas e processos. Entretanto, não é necessariamente uma relação de causa e efeito que regula um ambiente tecnológico, assim como seus design não são necessariamente convergentes. Isto pode ser observado nas artes ou nos jogos: enquanto a forma cientifica deve obedecer, fundamentalmente, critérios de eficiência, o estilo tecnológico pode agregar normas artísticas e de arrojo em detrimento da eficiência. Poderia o avanço destes ambientes simulados afetarem nosso julgamento cientifico?

No processo de desenvolvimento e inferência das leis do movimento, por exemplo, atores como Thomas Bradwardine, monge da escola de Merton, Galileu Galilei ou Isaac Newton utilizaram recursos experimentais elementares como esferas e rampas, além de suas extraordinárias capacidades mentais; um físico de partículas necessita de um acelerador de partículas de diâmetro quilométrico para compreender as propriedades da matéria. Neste caso, ciência e tecnologia confundem-se completamente, a ponto de não ser possível distinguir onde começa e termina o estudo da matéria e o fruto de nossa destreza instrumental.

Poderíamos entender que caminhamos, apenas, para uma interpretação simbólica e tecnológica da natureza, a não ser que a própria tecnologia seja um passo evolutivo natural.

Segundo Ortega y Gasset, podemos reconhecer três fases distintas da técnica. A utilização tosca de ferramentas, como pedras e paus, por homens ou animais, é conhecida como a técnica do acaso. O surgimento de estados de trabalhos mais acabados, a partir do aperfeiçoamento de ferramentas, como o polimento de pedras, a criação de lanças e facas, o manuseio do barro, é conhecido como técnica dos artesãos. Finalmente, temos o surgimento das máquinas, geradores e máquina a vapor, e com isto o advento da técnica dos técnicos. A tecnologia, que não foi prevista por Gasset, surge com um paradigma intrínseco. A técnica sempre foi entendida como um meio onde o homem, no comando do processo, ditaria suas finalidades, de forma autônoma. Entretanto, a tecnologia é uma replicação sistemática das técnicas, com velocidade e confiabilidade muito maiores do que a capacidade humana. A auto-reprodução deixa de ser uma característica unicamente humana nesta relação homem e tecnologia. Isto pode ser verificado em áreas como robótica, nanotecnologia, inteligência artificial. O homem deixa de ser o único criador de paradigmas e passa a dividir este papel com as máquinas. Estamos em processo de modificação qualitativa dos valores humanos proporcionado pela tecnologia, mas isto pode ser considerado como uma amplificação do antropocentrismo na medida em que estas máquinas obedeçam a características legítimas da evolução humana e apresentem critérios reconhecidamente humanos, notadamente os éticos e morais.

A presença tecnológica no meio cientifico torna possível o acesso humano a reinos inescrutáveis pelos nossos sentidos, como nas freqüências luminosas e sonoras. Mas as incursões das máquinas no campo da razão e do pensamento são as que prometem as maiores revoluções. Com velocidades de processamento milhões de vezes superiores aos do neurônio, as máquinas criarão uma metalinguagem que poderá fornecer respostas novas e originais para velhas questões, além do surgimento de perguntas de que hoje somos impedidos, por nossas limitações orgânicas.

As capacidades integradas de processamento de informações e sensoriamento do ambiente hoje interferem decisivamente nas formas de produção e nas relações sociais. As máquinas criaram o fenômeno do desemprego estrutural, onde os homens perdem seus postos de trabalho ou tem seus salários aviltados pelas máquinas. O domínio dos processos por grupos ou países criou uma concentração de renda sem precedentes. A mídia e suas ramificações uniformizam a cultura e as opiniões.

Todavia, o grande parâmetro ético de avaliação de uma tecnologia é o grau com que esta afeta a natureza. A capacidade de poluição e degradação do ambiente é o seu grande fator de aceitação, e o impacto social não se impõe, claramente, como regulador ético, prevalecendo à capacidade em gerar riquezas. Neste cenário, a potenciação das tecnologias lança uma sombra acerca dos eventuais benefícios à humanidade.

A luta pela sobrevivência é amoral. A saga humana dá conta de que o ambiente e formas de vida menos preparadas submetem-se ao julgo das formas mais aptas. Entes artificiais dotados de vontade de potência podem ser ameaçadores. Um adestramento cuidadoso das tecnologias e uma religiosa compreensão acerca da prioridade das formas de vidas orgânicas deverão se constituir em item obrigatório no software das máquinas do futuro.

Com a combinação entre ciência e tecnologia, o homem desencadeou uma poderosa e irreversível força de sondagem e transformação do ambiente. Da interpretação e operação num nível simbólico correto, dependerá se implantamos um elo evolutivo vulnerável ou se perpetuaremos nossa humanidade. O que é o homem? Meros animais ou estados mentais espiritualizados, o que queremos reiterados?

Entender quais as qualidades humanas desejáveis num mundo onde o significado da sobrevivência adquire, cada vez mais, um sentido virtual, onde o homem se desapega de atividades ordinárias como o cultivo e o trabalho repetitivo. Alargar os horizontes éticos de forma a distribuir os benefícios sem destruir o meio ambiente. São desafios para os quais ainda temos mais perguntas do que respostas.



Notas:

(1) Linearmente, é a pesquisa cientifica que dá origem e cria oportunidades tecnológicas, ocorre que muitas das propriedades naturais só podem ser verificadas sob condições especiais como alto vácuo ou altíssimas energias, o que demanda técnicas e tecnologias especiais. Assim sendo, a própria tecnologia fica sujeita a validação, ou deve tornar-se um método falseável. Nestes casos, é a tecnologia quem cria as condições para o desenvolvimento cientifico.

(2) José Ortega Y Gasset, em meditações sobre a técnica, afirma que o homem é o único ser em transformação conhecido. Enquanto os demais animais e objetos são seres acabados, o homem é um processo que necessita da técnica para tornar a natureza aceitável aos seus padrões.

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